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A grama e a Complexidade




Homem é homem. Grama é grama. Simples!


Seis meses depois do falecimento da minha mãe, passei numa locadora e vi que havia chegado o filme “A Vida é Bela”, do Benigni. Lamentei minha mãe não tê-lo visto no cinema, na época ela já não conseguia ficar sentada tanto tempo. Mas ela iria adorar se eu pudesse levar a fita para casa. Com certeza ela, filha de italiano, iria ver alguns aspectos com mais propriedade que eu que era apenas neto. Eu não cheguei a conviver com meu avô, sabia das histórias ou da personalidade dele apenas pelo que ela me falou.

A última vez que fomos ao cinema vimos o filme “Central do Brasil”. Falamos muito sobre isso, sobre ver a vida através de uma pessoa tão diferente, sobre a transformação que a personagem interpretada pela Fernanda Montenegro foi tendo ao longo do filme. Para minha mãe foi também um pequeno renascer, esse momento teve uma profundidade um pouco maior. Parece que a pessoa que sabe que está chegando ao fim fica um pouco menos apegada aos seus valores, fica mais aberta a admitir outros modos de vida, fica admirando essas outras maneiras de ser, fica até com uma ponta de arrependimento por coisas que não viveu porque não se permitiu.

Pensei no que conversaríamos após assistir “A Vida é Bela”, no quanto ela iria se transformar desta vez. Então me peguei pensando: “Que besteira, ela está morta. Morta! Que adiantou para ela ter visto “Central do Brasil”, que adiantaria ver isso agora? Enquanto estava viva sim, fazia sentido, mas agora? Tanto faz pra ela ter visto ou não”.

Engano, achar que a pessoa que se foi acabou no momento da morte é de uma simplificação absurda. Se o modo cartesiano de pensar libertou o homem da tirania do catolicismo medieval, de outro modo o escravizou à uma concepção simplista e linear da vida. A pessoa nasce, cresce e morre. Pronto. Como um carro, como qualquer bem de consumo. Antes de ser um paradigma cartesiano, é uma concepção patriarcal, herdada por Descartes. (Ver comentário “1. cegueiras paradigmáticas” abaixo dessa postagem)

Numa sociedade rural até mesmo nos dias de hoje a relação mais íntima do homem com a natureza faz com que ele veja mais claramente que a vida é norteada por fazeres cíclicos. Num período ele ara a terra, noutro ele semeia, depois tem a época só de cuidar, tem o tempo de colher. No outro ano é a mesma coisa. Existem também os ciclos menores, as luas boas para podar, para pescar, para cortar o cabelo. O ciclo menstrual faz a mulher mesmo a mulher urbana estar mais sintonizada à ideia de período, e essa visão circular da vida é, por isso e outras coisas, mais feminina, é a concepção matriarcal da vida.

Ciclos maiores e menores. Não como as engrenagens do relógio de Descartes, mas como espirais. Existir o ciclo do meu avô, o ciclo da minha mãe, o meu ciclo, o ciclo dos meus filhos. Minha existência não dependeu da existência do meu avô apenas até o momento de minha mãe ser gerada, nem da existência dela até o meu nascimento. O que eu sou é parte do mesmo espiral o que ele era não morreu com seu corpo mas é parte intrínseca de mim, em tudo o que creio ser o mais íntimo, o mais eu: minha personalidade (indivíduo), minha identidade (o que me une e separa do restante da humanidade como sociedade) e minha essência (o que me une e separa do restante da humanidade como espécie).


Assim é o homem.


Mas e a grama?

Graminhas nascem, graminhas morrem e vivem gerações em espiral. Será?

Sei que a grama que está no jardim de casa eu peguei a muda lá na Gávea, no campo do Flamengo. Não é qualquer grama não, é a mesma grama que o Zico pisava durante anos. Como assim, a mesma grama?
Foi uma muda, e como toda muda, é um pedaço daquela grama que cortei, que tirei do gramado assim como se tivesse tirado um dedo seu. Aí ela cresceu e se esparramou pelo jardim todo da minha casa, como se o seu dedo crescesse e você se esparramasse por todo o jardim da minha casa.

A grama da Gávea não é qualquer grama. Tem história, tem cultura, tudo bem que ela não sabe. A gente diz que ela é filha da grama que o Zico pisava, diz assim, pra todo mundo entender sem ter que ler esse texto, mas na verdade ela é a grama que o Zico pisava e é isso que confunde a cabeça de nós homens, porque não sabemos pensar como grama, se grama por acaso pensasse. Esse é o sentido do texto do John Donne, que abre o texto do Humberto Mariotti sobre a complexidade. 

“Nenhum homem é uma ilha; qualquer homem é uma parte do todo. A morte de qualquer homem me diminui porque faço parte da humanidade. Assim, nunca procures saber por quem dobram os sinos: eles dobram por ti.”


A Grama, se pensasse, poderia saber que ela tem uma relação com o gramado maior do que a maioria dos homens acham que possuem com a humanidade. Porque a grama, se não fizesse um teste de DNA ficaria confusa em ver outra grama e saber se a grama é outra ou é ela mesma.


Em várias tribos indígenas da América do Sul a menor célula social é a grande família, que para nós seria juntando os primos e tios. O que acontece é que uma criança considera como pai o seu pai e os irmãos dele, como mãe sua mãe e as irmãs dela. Por isso quase não existe criança órfã numa aldeia, pois se seu pai verdadeiro morre ele tem outros pais e a dor da perda é minimizada, no imaginário e no real, porque ele não vai passar mais dificuldade, não vai passar fome, ele tem muitos outros pais.

O modo de pensar a organização familiar fez deles um pouco mais grama que nós.



E a complexidade? 
A complexidade é um fato, não um conceito. O pensamento complexo é que é uma visão de mundo, um paradigma, o paradigma da atualidade, que necessitamos para compreender o mundo de uma maneira mais completa que o raciocínio cartesiano.

Pelo paradigma cartesiano homem é homem, grama é grama. Pelo paradigma da complexidade, homem é, ou poderia ser, se quisesse, como grama, parte de algo maior. Parte da humanidade, parte do mundo natural, parte também de um mundo das ideias, do outro mundo criado pelo pensamento. Até Stalin, materialista, dizia que o pensamento é a forma superior da matéria.

O poder de um olhar diferente é muito grande. O olhar cartesiano transformou o homem, que transformou o mundo natural e colocou-o à nossa disposição, melhorando muito nossa vida. Agora há outros desafios para a humanidade e o paradigma cartesiano não responde mais a muitos deles.



Um exemplo de mudança pelo olhar diferenciado.

No período de invasão romana na palestina os judeus fizeram uma importante modificação nas suas leis. Uma mudança de olhar que garantiria a preservação de seu povo. Como? Até então, seguindo as tradições, os direitos de títulos e identidade eram passados de pai para filho de uma geração a outra, ou seja, a patrilinearidade. As legiões romanas ficaram conhecidas por uma prática comum: o estupro. Para os romanos era o significado simbólico de poder tomar as filhas da nação conquistada, usurpar da descendência, ter os ventres de Israel semeados por outro povo trazendo ao mundo filhos de Roma. Era mais que apenas saquear o presente, era apossar-se de seu futuro. A matrilinearidade foi a solução simbólica e legal para essas crianças sem pais de Israel e garantiu a esse povo que elas seriam a continuidade de um povo que não se permitia subjugar.

A mudança que a principio não foi material. Foi um novo olhar. Um novo paradigma que permitiu a sobrevivência de uma cultura.


Vou terminar com um trecho do que Edgar Morin escreveu em “Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro”

Por isso, a educação deveria mostrar e ilustrar o destino multifacetado do humano: o destino da espécie humana, o destino individual, o destino social, o destino histórico, todos entrelaçados e inseparáveis. Assim, uma das vocações essenciais da educação do futuro será o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria à tomada de conhecimento, por conseguinte, de consciência, da condição comum a todos os humanos e da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra...

Como assim? Enraizamento?
(brincadeirinha...)

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Teco Galati

OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO – capitulo I – Edgad Morin

1.4 As cegueiras paradigmáticas
Não se joga o jogo da verdade e do erro somente na verificação empírica e na coerência lógica das teorias. Joga-se também, profundamente, na zona invisível dos paradigmas. A educação deve levar isso em consideração.
Um paradigma pode ser definido por:
• Promoção/seleção dos conceitos-mestres da inteligibilidade.
Assim, a Ordem, nas concepções deterministas, a Matéria, nas concepções materialistas, o Espírito, nas concepções espiritualistas, a Estrutura, nas concepções estruturalistas, são os conceitos-mestres selecionados/selecionadores, que excluem ou subordinam os conceitos que lhes são antinômicos (a desordem, o espírito, a matéria, o acontecimento). Desse modo, o nível paradigmático é o do princípio de seleção das idéias que estão integradas no discurso ou na teoria, ou postas de lado e rejeitadas.
• Determinação das operações lógicas-mestras. O paradigma está oculto sob a lógica e seleciona as operações lógicas que se tornam ao mesmo tempo preponderantes, pertinentes e evidentes sob seu domínio (exclusão-inclusão, disjunçãoconjunção, implicação-negação). É ele quem privilegia determinadas operações lógicas em detrimento de outras, como a disjunção em detrimento da conjunção; é o que atribui validade e universalidade à lógica que elegeu. Por isso mesmo, dá aos discursos e às teorias que controla as características da necessidade e da verdade. Por sua prescrição e proscrição, o paradigma funda o axioma e se expressa em axioma (“todo fenômeno natural obedece ao determinismo”, “todo fenômeno propriamente humano se define por oposição à natureza...”).
Portanto, o paradigma efetua a seleção e a determinação da conceptualização e das operações lógicas. Designa as categorias fundamentais da inteligibilidade e opera o controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles.
Tomemos um exemplo: há dois paradigmas opostos acerca da relação homem/natureza. O primeiro inclui o humano na natureza, e qualquer discurso que obedeça a esse paradigma faz do homem um ser natural e reconhece a “natureza humana”. O segundo paradigma prescreve a disjunção entre estes dois termos e determina o que há de específico no homem por exclusão da idéia de natureza. Estes dois paradigmas opostos têm em comum a obediência de ambos a um paradigma mais profundo ainda, que é o paradigma de simplificação, que, diante de qualquer complexidade conceptual, prescreve seja a redução (neste caso, do humano ao natural), seja a disjunção (neste caso, entre o humano e o natural). Um e outro paradigmas impedem que se conceba a unidualidade (natural ↔ cultural, cerebral ↔ psíquica) da realidade humana e impedem, igualmente, que se conceba a relação ao mesmo tempo de implicação e de separação entre o homem e a natureza. Somente o paradigma complexo de implicação/distinção/conjunção permitirá tal concepção, mas este ainda não está inscrito na cultura científica.

Teco Galati

(continuação do post 1)

O paradigma desempenha um papel ao mesmo tempo subterrâneo e soberano em qualquer teoria, doutrina ou ideologia. O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento consciente, controla-o e, neste sentido, é também supraconsciente.
Em resumo, o paradigma instaura relações primordiais que constituem axiomas, determina conceitos, comanda discursos e/ou teorias. Organiza a organização deles e gera a geração ou a regeneração.
Deve-se evocar aqui o “grande paradigma do Ocidente”, formulado por Descartes e imposto pelo desdobramento da história européia a partir do século XVII. O paradigma cartesiano separa o sujeito e o objeto, cada qual na esfera própria: a filosofia e a pesquisa reflexiva, de um lado, a ciência e a pesquisa objetiva, de outro. Esta dissociação atravessa o universo de um extremo ao outro:
Sujeito/Objeto
Alma/Corpo
Espírito/Matéria
Qualidade/Quantidade
Finalidade/Causalidade
Sentimento/Razão
Liberdade/Determinismo
Existência/Essência

Trata-se certamente de um paradigma: determina os conceitos soberanos e prescreve a relação lógica: a disjunção. A nãoobediência a esta disjunção somente pode ser clandestina, marginal, desviante. Este paradigma determina dupla visão do mundo — de fato, o desdobramento do mesmo mundo: de um lado, o mundo de objetos submetidos a observações, experimentações, manipulações; de outro lado, o mundo de sujeitos que se questionam sobre problemas de existência, de comunicação, de consciência, de destino. Assim, um paradigma pode ao mesmo tempo elucidar e cegar, revelar e ocultar. É no seu seio que se esconde o problema-chave do jogo da verdade e do erro.

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