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O Medo foi um dos meus primeiros mestres

Texto do escritor moçambicano Mia Couto.
Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo, afinal, foi o mestre que mais me fez desaprender.

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Iniciação à regência coral


Gestos, coordenação motora, brincadeiras de conteúdo musicalizante. Estamos por aqui estudando os fundamentos da técnica de regência coral, incluindo aí a marcação dos tempos, o andamento, a condução da articulação de frases e fonemas, a expressão dinâmica, a comunicação com os integrantes do grupo, a eficiência dos movimentos, tudo para um fazer musical prazeiroso e eficiente.

Será que é necessário a figura do regente para formação de um grupo coral?

Existem grupos vocais que não atuam com um regente lá na frente fazendo tudo isso que estamos aprendendo. Mas é preciso ver que para isso acontecer é necessario uma série de condições que permitam essa transcendência. A primeira condição é a formação de um grupo de pessoas com habilidades musicais, com experiência no fazer musical coral e uma afinidade enorme entre elas, tanto do ponto de vista musical como do ponto de vista das relações de grupo, de como lidam com as divisões do fazer musical, de como lidam com as funções que lhe são designadas a cada momento, de como lidam com o nascimento desse "designar".

Para formar um grupo assim basta chamar um monte de gente que canta bem e são legais pra caramba, certo?
Errado! Eu nunca vi um grupo que deu certo começando desta forma. Além do mais é preciso que haja necessidade dessa transcendência à atividade do condutor, o que na maioria dos casos não é necessário.


Aí voltamos a pergunta inicial. Dá pra formar um grupo, ensinar o fazer musical, permitir o acúmulo de experiência musical e social sem ter um regente, um professor, uma liderança?

Na minha opinião não, não dá. Embora hajam muitos grupos não tem essa liderança, quase sempre por total falta de opção. E sofrem muito com isso, com a falta de alguém preparado para fazer essa tarefa.

Então se não dá, o grupo precisará de um condutor, um professor, uma liderança. Essa pessoa tem que saber música, tem que conhecer repertório para grupos, deve saber fazer arranjos (por isso colocaram na grade do nosso curso), tem que ter uma proposta que sintetize o que você acredita como valores de uma pedagogia musical e tem também que saber expressar com o corpo tudo isso, para proporcionar ao grupo a possibilidade de fazer música em conjunto.


Mas aquela pergunta inicial muitas vezes está associada ao questionamento da necessidade de um regente para no momento da execução musical.

Será que a presença de um condutor é realmente necessária?

E aí podemos lembrar dos três textos que lemos para tirar a conclusão. Os textos falam sobre a maior complexidade sonora exigindo a presença exclusiva de um músico com a função de conduzir a música, principalmente para marcar o tempo musical e também para conduzir a dinâmica, praticamente única função dos condutores do canto gregoriano. E à partir do romantismo, devido à "subjetividade crescente  com que as novas obras musicais eram compostas"¹, a necessidade de uma pessoa para determinar essa subjetividade.
Bozzini³ faz uma bela síntese: "Podemos dizer que o ato de reger acontece em vários níveis distintos:
1. No mais imediato, os gestos do maestro devem indicar ao músico quando e como tocar.
2. Num segundo nível, ele deve frasear o discurso musical, conseguindo dar a cada frase sua inflexão adequada, destacando-a dos acompanhamentos.
3. Do ponto de vista mais elevado, ele deve ser capaz de articular a forma da música, conseguindo estruturar o jogo formado entre a apresentação, desenvolvimento e conclusão dos temas musicais presentes em cada obra
".

 Mas é nessa síntese feita pelo Felipe Salles, que fica mais evidente a questão da singularidade de cada interpretação. "A função do maestro é basicamente marcar o ritmo (tempo musical) certo e equilibrar as dinâmicas indicadas, mas seu potencial expressivo é o que dá a uma determinada interpretação uma certa singularidade em relação à outra (...)"².

Essa singularidade é óbvia quanto a qualquer intérprete. A música "Caça à raposa" é a mesma quando ouvimos o João Bosco, quando ouvimos a Elis ou o grupo Vésper?
A questão é que, num grupo, quem é, qual cérebro ou coração determina essa singularidade?
 A interpretação singular pode vir de um grupo de cérebros e corações? Ou os cérebros mais dotados (de conhecimento ou de velocidade de processamento) e os corações mais exaltados é que acabarão por impor sua visão singular à obra? Eu acredito que essa é a tendencia natural, a não ser que, artificialmente, o grupo imponha alguma outra maneira de proceder, mais democrática, mais anarquista ou outra proposta qualquer.
A não ser que o grupo tenha um condutor, o que é a grande maioria dos casos, dos grupos que conhecemos.
Porque num trabalho coral o tempo de preparação de uma obra é normalmente muito maior que num grupo instrumental, que numa orquestra. Temos felizmente, o tempo de absorver a obra em todas suas possíveis nuances. Então a interpretação, as dinâmicas e agógicas são absorvidas mais naturalmente, parece que tem um fluir mais natural que numa grande orquestra.

[Estou aqui recordando uma apresentação de música antiga no festival de Curitiba, um grupo instrumental pequeno, músicos que fizeram apenas um ensaio, sem regência; e a música fluir como se eles tivessem ensaiado por anos; mas é isso: um estilo de música que cada um deles faz há anos, seguindo linhas estéticas muito semelhantes, principalmente quanto às articulações, então o fazer musical flui como se fossem uma banda de rock, um trio de jazz, um grupo de pagode fazendo música no churrasco.]

Mas no vídeo abaixo, será que o maior papel do regente é de mostrar o tempo musical, lembrar a todos a dinâmica aplicada a cada parte da música?
Na primeira música notamos que a marcação do tempo musical é bem necessária, não pela existência de compassos variados mas pela liberdade temporal. Na segunda a marcação do tempo seria absolutamente desnecessária. Então o que ele faz ali de mais importante? E na terceira música é que vemos a maior função do condutor desse tesão de coral.

É aí que vemos a transcendência dos gestos. Significam um complexo de manifestações sonoras ritmicas, de dinâmica, de articulação e de várias pequenas nuances evidenciadas pelo som brotado daqueles corpos sonoros. Por isso que coral bom de se ouvir geralmente é coral bom de se ver. Ver fazendo música, ver como o som sai daquelas pessoas, ouvir o todo sonoro e ver o grupo todo como uma coisa só.

A técnica é a base para que possamos chegar a um alto grau de complexidade musical. Principalmente porque quando atingimos com um trabalho esse alto grau de complexidade a técnica parece que some, de tão integrada que fica.


Só nos resta estudar, né gente!!!

1. História da Regência Orquestral no século XIX - Carlos Kaminski
2. O Maestro - de Felipe Salles
3. A técnica do regente - o que há por trás dos gestos do regente - Angelo Bozzini
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Pergunta lançada. O que você faria se fosse convidado a fazer um coral com:


70 crianças de 13 a 17 anos,
Que não estão lá por vontade própria,
um vez por semana,
numa sala muito curta e larga

minha resposta:

Se não pudesse recusar o trabalho primeiramente eu choraria. Depois de recuperado do susto inicial  pensaria em criar condições para construção do encantamento, pois nessas condições só por encantamento mesmo. Mas nós, como professores e como artistas temos que saber criar esse encanto. Então vamos lá, feiticeiros, à ação.

1.     1. Juntar um arsenal de músicas de diferentes estilos e sonoridades (músicas de sons percussivos onomatopaicos, músicas minimalistas com temas sobre um ou dois acordes, músicas com frases de pergunta e respostas bem evidentes, etc) divididos em arranjos a uma voz acompanhada por instrumento, uma voz acompanhada por outra, duas vozes nítidas, duas vozes acompanhada por outra, três vozes, quatro vozes. Buscaria primeiramente trabalhar com sonoridades exóticas, sonoridades que são base das músicas que eles escutam (seria bom pesquisar isso ou então ir à média do gosto da faixa etária e social), mas não fazer no início músicas que eles escutam (nenhum amante de pagode cantaria heavy metal e nessa idade eles sempre se dividem em guetos de escuta musical muito excludentes). 

2.     2. Construiria uma estratégia para que os alunos me vissem como “o cara”. O cara que conhece as músicas que eles gostam (então teria que ouvir muita coisa, músicas, letras, histórias, “causos” e decorar); o cara que conhece pessoalmente os artistas que eles admiram (buscar contato com alguns amigos e até mesmo contar algumas estórias fantasiosas); o cara que sabe o que estará na onda na próxima temporada musical (haja fantasia). O cara que sabe colocá-los para enfrentar um desafio sonoro (de batucar algo complexo ou tirar o baixo de uma música) e que consegue fazê-los se sair bem. O cara que não abaixa a cabeça para o aluno que se sente o próprio Estados Unidos nem fala grosso com o que se acha uma Bolívia (essa eu roubei do Chico Buarque, kkkkk).

3.     3. Procuraria sempre sair de cada ensaio com alguma conquista musical evidente. Conquista evidente para os alunos. E isso não é nem um pouco fácil.

4.    4. Procuraria ser sempre o mais bagunceiro e barulhento da classe. Não perder o contato visual e auditivo com ninguém em momento algum. Se não deixam eu me concentrar ninguém conseguirá se concentrar também. E' importante mudar o ritmo das atividades sempre que ouvir um bocejo, uma brincadeira paralela. Deixar todos conversarem muito, conversarem à vontade, pois isso é muito bom, desde que saibam (aprendam) voltar à atenção rapidamente com um gesto ou som, por isso é importante ensiná-los a fazer bagunça.

Pensar em fazer tudo isso aí descrito é possível. Tentar realizar será o desafio e a tarefa árdua de cada dia. Mas sem uma estratégia não dá nem pra pensar em táticas.
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Caça à Raposa

música e letra: João Bosco

O ano era o de 1975, plena ditadura militar. À sociedade se impunham leis de excessão que obrigavam todos a ficar calados diante das mazelas de um regime autoritário. Pessoas eram "desaparecidas", numa caça covarde que as forças do regime insistiam em dizer que era uma guerra. Mas o que é uma guerra com forças tão desiguais, senão uma caça com final previsível. Se essa música é uma metáfora? Talvez. É uma suposição. Mas taí a letra. Veja o que acha. Ouça a música e tire sua conclusão.
 
tema A  Dm  Dm7M  Dm7  Dm6
O olhar dos cães, a mão nas rédeas
E o verde da floresta
tema A
Dentes brancos, cães
A trompa ao longe, o riso
Os cães, a mão na testa:
tema A' (terça maior acima) Gm  C7  F7M  Dm
O olhar procura, antecipa
A dor no coração vermelho
tema A' (terça maior acima)  Bb7M  C7  F7M  Dm
Senhoritas, seus anéis, corcéis
E a dor no coração vermelho
tema A' (terça maior acima) com final conclusivo  Bb7M  A7  Dm
O rebenque estala, um leque aponta: foi por lá!...
tema A
Um olhar de cão, as mãos são pernas
E o verde da floresta
tema A
- Oh, manhã entre manhãs! -
A trompa em cima, os cães
Nenhuma fresta
tema A' (terça maior acima)    Gm   C7  F7M   Dm
O olhar se fecha, uma lembrança
Afaga o coração vermelho:
tema A' (terça maior acima)  Bb7M  C7  F7M  Dm
Uma cabeleira sobre o feno
Afoga o coração vermelho
tema A' (terça maior acima) com final conclusivo  Bb7M  A7  Dm
Montarias freiam, dentes brancos: terminou...
tema B  Dm11     Dm7  Bb/D    Dm7
Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
tema B
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
tema A' (terça maior acima)   Gm   C7  F7M   Dm
Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
tema A' (terça maior acima)   Bb7M  C7  F7M  Dm
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
tema A' (terça maior acima) com final conclusivo    Bb7M  A7  Dm
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo, e o fogo.

O tema da caça foi usado com alguma frequencia na música polifonica do período renascentista. O movimento da verdadeira caça à raposa era percebido por vários músicos como um movimento análogo ao movimento sonoro almejado pelos madrigais. Veja aqui um exemplo:




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