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Danças e Percussão Brasileiras - Prof.ª Kelly Guimarães


Dia 23 minha filha me convidou pra ir ao morro do querosene, bairro da zona oeste de São Paulo, pra ver o batismo do Boi, do Boi-bumbá. Há 30 décadas mudou para esse lugar um maranhense de Cururupu, que ainda menino iniciou seu aprendizado nas danças e festividades populares e passou sua infância vendo e ouvindo de perto os bumba-bois de costa-de-mão. Trouxe para cá sua experiência e sua capacidade de reunir pessoas em torno de suas atividades, dando de presente à cidade de São Paulo uma festividade de Boi-bumbá tão autêntica como a que presenciava na sua terra natal. Tem pessoas no morro do querosene que nasceram na tradição do Boi-bumbá, como se o Boi ali sempre existisse. Tem muita gente no morro do querosene que sabe tudo do Boi-bumbá, como se em Cururupu tivesse nascido.



           
Levei ao morro um garoto de 22 anos, colombiano, que estava de passagem, hospedado em minha casa. Ele estuda na Argentina, passou por aqui por acaso, a caminho do Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa. No sábado à tarde, presenciou um por de sol com céu azul claro muito luminoso e nuvens esparsas cor-de-rosa. Tinha até, de quebra, uma meia-lua minguante oriental brilhando no meio do céu. Acho que se algum carioca falar que São Paulo é a terra poluída da garoa ele vai acreditar que todos os cariocas mentem. Mas o que ele mais ficou boquiaberto foi ver a diversidade de pessoas, de etnias, de classe social, presentes ali, dançando e cantando ao som do batismo do Boi. Ver a escandinava loura tocando a onça – aquela cuíca enorme e grave – o árabe cantando um verso no improviso, a burguesinha improvisando ao violino, a criançada branca, negra , indígena, mulata, dançando todos os passos na grande roda junto aos velhos, ver as três japonesas cangaceiras, aquilo tudo pareceu para ele o paraíso da diversidade, uma impressão até de que aqui não existe a divisão de classes, que não existe o racismo.



As festas populares, principalmente as festas com dança, acompanhadas dos instrumentos que são os mesmos em festas populares do mundo todo tem esse poder de reunir as pessoas, de criar momentos onde a humanidade se torna um pouco mais humana. Os mesmos instrumentos e na Colômbia, terra do Felipe, meu hóspede, produz uma música tão diferente. Lá no país dele esses festejos não reúnem as classes sociais como aqui em São Paulo. Lá ainda é preciso fazer um trabalho de valorização da cultura popular como já se faz por aqui há alguns anos, mesmo que devagar e pouco abrangente, graças à dedicação de muita gente, tanto de gente que pertence desde pequenos a esse mundo extenso, mas pequeno, da cultura popular, como da elite intelectual e artística brasileira.
   
Para mim, que já conhecia o morro do querosene e suas festas do Boi, a maior surpresa foi perceber – apesar da quantidade de celulares em ação, falando, filmando ou tirando fotos, apesar da iluminação pública, apesar de toda urbanidade presente – foi perceber em determinado momento, como aquela festa nos colocou em outro tempo, outro espaço, nos permitindo ouvir e se movendo com todo o corpo ao sabor de um ritmo primitivo que pertence a todas as culturas de todas as épocas. Aquele som que eu presenciava não surpreenderia o homem que vivia há 5.000 anos. Ele poderia entrar na roda, cantar e dançar com todos, para, no final da folia, beijar aquela turista americana high tech, que mandaria por seu iPhone, para seus amigos, a foto daquele autêntico paulista que encontrou naquela festa exótica.

Nas aulas de danças e percussão brasileiras, aprendi pra valer, com a Prof.ª Kelly, que não podemos desperdiçar a força que essas tradições possuem. Como professor de música não posso perder a oportunidade de criar momentos onde meus alunos possam conhecer mais de perto essas tradições, seja através das músicas, danças, das artes plásticas, através das histórias. Não virtualmente, mas tocando, dançando, criando instrumentos e vestimentas, contando e ouvindo as histórias. Levá-las ao morro do querosene depois de tudo isso seria o máximo, não?
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