O que vou escrever agora é um esboço para algo que possa ser mais bem elaborado, com muito mais tempo, conhecimento, pesquisa e reflexão. Será o tema de minha monografia.
O que percebi comparando diferentes visões e ações no ensino musical é que há diversos campos de atuação na mente do aluno, na mente de quem executa o fazer musical, na mente de quem tenta ensinar o fazer musical.
Talvez o mais visível, mais próximo ao que pensamos como o fazer musical seja a atividade mecânica de tocar. Na maioria das vezes o processo de iniciação ao ensino de música é aquele em que o aluno vai a uma escola de música à procura de quem o ensine a tocar ‘tal’ instrumento escolhido previamente por ele.
O singular é que, salvo exceções, os professores que recebem o aluno (ou o dono da escola), sendo as pessoas que detém o conhecimento da prática do ensino musical, não costumam fazer nenhum questionamento sobre essa via de entrada do noviço ao mundo musical. O que poderia ser questionado: Por que esse instrumento e não outro? Por que um instrumento e não vários? Por que um instrumento e não a voz? Por que aula de voz sozinho e não em grupo (coral)? Por que não começar com a musicalização (mesmo se adulto)?
Claro que existe aí a questão do aluno ser levado por uma combinação de diversos fatores objetivos e subjetivos que culminam no desejo de tocar tal instrumento e por isso mesmo essa escolha carrega uma eficiente carga de estímulo ao aprendizado musical. Mas não deveríamos, nós profissionais da área, darmos mais importância a esse questionamento? Sim. Mas normalmente não fazemos, principalmente se o aluno em potencial for jovem ou adulto. Por que?
primeiro campo a ser falado
Porque é natural. Buscar a música através de um instrumento é uma atitude muito natural. Porque a primeira via
̶ a busca da manifestação do instrumento, essa manifestação bruta de primeiridade (
cf. semiótica de C. Peirce - ver nota ao fim da postagem, vale à pena ler antes de continuar, principalmente se o leitor não conhece a teoria semiótica de Peirce), o mais visível ao fazer musical
̶ é a atividade mecânica de tocar. Então o professor, sabedor de tudo, já orienta o aluno:
“vamos lá, você já tem o instrumento? Comece segurando-o assim...”. Felizmente em muitos casos, antes disso o aluno já pegou o instrumento de qualquer maneira, brincou com ele, mexeu de tudo quanto é jeito.
Tocar no instrumento (por isso é esse verbo: tocar). É uma relação tão esperada, tão próxima, que não importa que na realidade o instrumento foi criado pelo homem para facilitar essa sua essência de manipulador dos sons da natureza. O que importa, ao olhar por esse viés, é que o homem é que foi criado para manipular esse objeto especial e desta forma extrair os sons que potencialmente estão lá. Aqui o homem é o real instrumento desta relação.
Relembremos lá no íntimo: quando olhamos para o instrumento, ávidos por tocar, não era como se ele tivesse vida própria, como se olhasse desafiadoramente para nós e dissesse: "Venha, faça-me soar! Revele toda beleza dos sons que posso produzir"?
Se o instrumento guarda em si a natureza de determinados sons ao homem resta ir a ele e buscar esse som, assim como um pintor pode ir em busca do azul. A manifestação sonora é bruta. É seu timbre acontecendo na altura qualquer que sair, pelo tempo que se revelou necessário para que pudesse mostrar sua existência. É uma manifestação original. É primeiridade pura.
Claro que quando buscamos a técnica para extrair esse som com controle entramos no campo da terceiridade, mas como necessidade de dominar o que foi revelado nesse contato direto, quando o som primordial do instrumento era o todo.
Baseados nessa necessidade foram desenvolvidos vários métodos que reúnem exercícios que graduam o domínio técnico-motor, nem sempre associados ao domínio de outras habilidades musicais, nunca associados ao domínio da linguagem musical como um todo. Na maioria das vezes faz, no máximo, ligação com o domínio da teoria musical e de algumas estruturas de organização sonora como intervalos, escalas, tonalidades, dinâmica, células rítmicas, articulações e outras.
Alguns dos autores consagrados e seus respectivos métodos: Suzuki, Klosé, Henrique Pinto, Vaccai, Hannon, Hal Leonard, etc.
A prioridade desses métodos é formar um aluno com alta capacidade de reproduzir sons, ou seja, instância de secundidade, que é a relação direta com o instrumento produzindo os sons, e instância de terceiridade, que permite manifestar o som que deseja, na ordem que deseja (ou que alguém, o compositor, desejou). Instâncias que só existem em decorrência da primeira, nascida da necessidade de buscar o som que nos tocou, que nos causou espanto e catarse numa experiência primordial.
Reproduzir? Mas então quem produz? Ah, isso não é o problema de quem elaborou tais métodos, preocupados mais (ainda bem que alguém se preocupou com isso) em acabar com a frustração ter uma ideia musical na cabeça e os dedos não conseguirem realizar.
segundo campo a ser falado
Então percebemos que ao aprendizado musical é muito importante se preocupar com o desenvolvimento de um pensamento musical, com o desenvolvimento de uma linguagem musical que nos permita elaborar mentalmente uma expressão musical, um arcabouço que nos permita criar música, que nos permita dialogar com outros músicos, que nos permita estabelecer uma comunicação com ouvintes (público passivo ou os músicos executantes). Mas, antes disso, a relação dual do som bruto com o manipulador de sons, instância da secundidade referida por Charles Peirce.
Quando ouvimos uma música nova o que é dela que nos chama a atenção? Por que geralmente mostramos essa música a outra pessoa? O que nos faz querer mostrá-la a outras pessoas?
O que queremos compartilhar é a catarse provocada pela obra. Qual elemento faz essa catarse?
O leitor pode averiguar em sua experiências pessoais: quase sempre a catarse provém dos atributos de todas as instâncias (primeiridade, secundidade e terceiridade), que fervilham no momento da criação do que normalmente nos referimos como momento “genial” dentro de uma composição. Mas a idéia genial não pode ser lembrada sem que seja estruturada, e isso é campo exclusivo da terceiridade. Se não houvesse estruturação não poderíamos usar em composições, arranjos, orquestrações; só aconteceria nessas manifestações casuais de secundidade, que às vezes temos o privilégio de ouvir em algumas seções de improvisação livre ou mesmo de improvisação planejada, onde podem ocorrer casualmente. O que já foi "genial" num momento, como pode e deve ser estruturado e entendido e compartilhado e ensinado etc., não causa mais espanto, mas é o que existe o tempo todo numa composição; nem toda composição tem alguma coisa além disso, uma idéia que em algum momento do passado foi genial. Por isso uma composição pode ser muito boa sem ser genial; pode ser uma obra prima sem ser genial.
Ensinar esse dom, o dom de ser genial, é possível? Acredito que sim, acredito que se o aprendiz de música (e em música somos eternos aprendizes) puder vivenciar esses momentos de secundidade, esbarrando frequentemente na experiência dos "contatos imediatos de primeiridade", que é possível.
Em segundo lugar nos motivos de querer compartilhar com alguém a experiência de ouvir uma música, creio ser o encantamento pela performance, um encantamento semelhante ao sentido por ver uma habilidade circense ou esportiva. A habilidade do músico é secundidade pois é a instância do relacionamento do indivíduo com o seu instrumento. A performance depende também do conhecimento da obra, do estilo, de muitos detalhes como articulação e dinâmica. Isso já é instância da terceiridade. Lá no fim dos interesses poderia vir uma admiração por reparar habilidades de um músico como a capacidade de ler música ou pela capacidade de ouvir e distinguir sons, o que seria uma admiração bem cerebral, como a gente admira quem faz cálculos rapidamente.
Mas admito que muitas vezes o que me faz querer compartilhar a audição de uma música é o timbre, é esse contato com a primeiridade, a possibilidade de sentir no corpo aquele conjunto de ondas me acariciando o cérebro, me provocando sensações corpóreas indizíveis. Isso acontece ao ouvir um piano bom (um instrumento bom) ou outro instrumento até comum mas bem construído, cuja sonoridade passa pelos meus ouvidos com a mesma grandeza de sensações que só posso comparar ao ato de colocar algo na boca de sabor apropriado (um chocolate, um vinho, uma lichia), só comparado às sensações de carinho, de sexo, ou seja, sempre sensações de qualidade pura, sem se importar com a estrutura musical, com o acorde, com outras interpretações.
Mas voltando à secundidade, esta presumo ser a área do desenvolvimento da genialidade. É a área da experimentação sonora, da improvisação espontânea, do “insight” de uma composição. É o terreno considerado por muitos educadores como área difícil de ser invadida, área que parece pertencer somente a umas poucas cabeças privilegiadas*1. É a manipulação dos sons e das idéias musicais antes que elas se estruturem, antes que sejam lhes dada forma, antes que se submetam a leis. É área desenvolvida em algumas instâncias do que Koellreutter chama ensino pré-figurativo.
Aqui incluímos a propensão do homem em achar sons e que, para isso, procura na natureza um meio de dominá-los, guardá-los, colocá-los num recipiente. E isso, na prática quer dizer criá-los, pois é o único meio de se apoderar dos sons da natureza, inclusive, e mais, o que é muito importante, aperfeiçoando os sons da natureza e inventando os sons que na natureza não encontra. Também nesse campo da mente está essa volição do homem (o luthier), que cria uma ferramenta, um instrumento para fabricar os sons que anseia.
*1 Esse pensamento é fruto de uma educação musical que receberam e que tendem passar à diante. Esse pensamento está muito arraigado nas escolas brasileiras. Infelizmente a maioria dos nossos professores de música pensa assim. Isso não os torna professores ruins. Apenas limitam o desenvolvimento dos alunos às capacidades desenvolvidas nos primeiro e terceiro campos referidos nesse artigo. É também interessante ver essa separação: professores que desenvolvem o primeiro campo falado são os professores de prática de instrumento musical (aí também os professores de canto e técnica vocal); professores de teoria, percepção, composição, improvisação, análise, musicologia, etc., são os que desenvolvem o terceiro campo de atuação.
Nesse contexto estão os educadores como Schafer (em “Limpeza de Ouvidos”) e Self.
terceiro campo a ser falado
Mas se temos ideias musicais na cabeça e “os dedos ainda não respondem com rapidez e eficiência” por que não procuramos nos expressar através da voz*2, que normalmente nos obedece com mais facilidade?
Ao fazermos os primeiros voos musicais utilizando a voz, percebemos que se não há um treinamento do raciocínio, da linguagem musical, se não houver um exercício de associações mentais com estruturas pré-estabelecidas, a performance, a realização musical é comprometida.
Esse treinamento musical foi o foco de muitos educadores, entre eles Hindemith, Dalcroze, Willems, Kodály, e aqui no Brasil, Gramani, Gazzi de Sá, Villa-Lobos, Bohumil Med, Lucas Ciavatta, entre diversos outros.
É interessante ver a quantidade de educadores preocupados com esse campo de aprendizado musical. Esse saber se situa entre o tocar (manifestar o som) e a necessidade de tocar. Talvez por isso, por ser tão intelectual e sujeito à soberba, que muitas pessoas tem a tendência de sobrepujar sua importância. É aqui, também, o campo onde se desenvolve a habilidade e o domínio da composição, do arranjo, da orquestração, da análise musical, da crítica, da história, etc.
*2 Falo da voz como a manifestação sonora mais diretamente ligada ao pensamento, realizada por um corpo que não tem “lugar a apertar para que se produza essa ou outra nota musical”.
associação dos campos
Bom, pela maneira que foi aqui apresentado, creio que é natural acreditar que a indução ao desenvolvimento completo de um músico só poderia acontecer se conseguíssemos agregar ao ensino estes três campos do fazer musical.
Mas há quem já tenha tentado? Há quem já o faça? Parece não haver incompatibilidade entre estes campos. A incompatibilidade acontece entre as diferentes visões de valores que interferem no modo de atuar dentro de cada campo.
Koelreutter, Paynter, Schafer (em “Um rinoceronte na sala de aula”) e Swanwick*3 trabalham nessa perspectiva de educação musical, buscando uma formação total que integre estas atividades educativas que atuam em categorias tão diversas do fazer musical.
Me parece tão poucos. Me parece também que é nesse aspecto de agregar estes três campos que reside o sucesso de uma educação musical para ser aplicada tanto a um plano de atuação individual (cada professor conseguindo estar atento a todos esses processos de aprendizagem) como para ser aplicada a uma escola ou a uma nação. Não é a defesa de um determinado método a ser aplicado, mas a simples observação de integrar esses três campos de atuação do pensamento no fazer musical.
*3 Conforme se resume a sigla do pensamento de Swanwick: T.E.C.L.A. (Técnica, Execução, Composição, Literatura e Apreciação), parece que essas atividades estariam contemplando a atuação nesses três campos. Também nesse sentido de integração existe a educadora Ana Mae Barbosa, que chama de proposta triangular o que é apenas a enunciação de três processos que são importantes para aprender e para organizar a mente em relação à aprendizagem: o fazer, o apreciar e o contextualizar (apesar de que o Fazer tem que ter as atividades de tocar para desenvolver técnica, tocar para praticar a fluência musical, atividade de improvisar e atividade de compor, senão não se encaixa nessa integração desses três campos).
Essa entrevista me tirou algumas dúvidas: http://revistaescola.abril.com.br/arte/fundamentos/entrevista-keith-swanwick-sobre-ensino-musica-escolas-instrumento-musical-arte-apreciacao-composicao-529059.shtml
Como um aluno aprende Música?
SWANWICK Procurei responder a essa questão por meio de uma pesquisa com estudantes de Música ingleses com idades entre 3 e 14 anos. Aprendi que o desenvolvimento musical de cada indivíduo se dá numa sequência, dependendo das oportunidades de interação com os elementos da música, do ambiente musical que o cerca e de sua Educação. Com base nessas variáveis, posso dizer que o aprendizado musical guarda relação com a faixa etária. Cada uma corresponderia a um estágio de desenvolvimento.
Quais as características de cada um desses estágios?
SWANWICK O primeiro vai até mais ou menos os 4 anos. Sua marca principal são experimentações, com as crianças batendo coisas e explorando as possibilidades de produção de sons de cada instrumento. No segundo estágio, que vai dos 5 aos 9 anos, essa manipulação já funciona como uma forma de manifestação do pensamento, dando origem às primeiras composições, muito parecidas com as que os pequenos conhecem de tanto cantar, tocar e escutar. As criações se tornam mais variadas e supreendentes a partir dos 10 anos, num movimento que chamo de especulativo. Em seguida, já no início da adolescência, as variações passam a respeitar os padrões de algum estilo específico, muitas vezes o pop ou o rock, "idiomas" em que é possível estabelecer conexões com outros jovens. Por fim, a partir dos 15 anos, é possível desenvolver um quarto estágio, que engloba os outros três, em que a música representa um valor importantíssimo para a vida do adolescente, marcado mais por uma relação emocional individual e menos por modismos passageiros ou algum tipo de consenso social.
Que aspectos devem ser considerados no ensino de música nas escolas?
SWANWICK O fundamental é que os conteúdos sejam trabalhados de maneira integrada. Nos anos 1970, resumi essa ideia na expressão inglesa clasp. Além de ser uma sigla, um dos sentidos dessa palavra em português é "agregar". Proponho que há três atividades principais na música, que são compor (a letra C, de composition), ouvir música (A, de audition) e tocar (P, de performance). Essas três atividades, que formam o CAP, devem ser entremeadas pelo estudo da história da música (L, de literature studies) e pela aquisição de habilidades (S, de skill aquisition). (No Brasil, esse processo ficou conhecido como TECLA: T de técnica, E de execução, C de composição, L de literatura e A de apreciação.)
Qual a vantagem de trabalhar nessa perspectiva?
SWANWICK Um ponto forte é considerar que todas essas coisas são importantes e que devem ser desenvolvidas em equilíbrio. A ideia do clasp também pode ser útil para o professor perceber se está gastando muito tempo, digamos, no L, descrevendo fatos históricos e desenhando instrumentos, por exemplo. Dar muito enfoque à história da música é uma forma simplificadora de achar que se está ensinando Música. Acontece que a história não é música - ela é sobre música. O mesmo excesso pode ocorrer com docentes que atuam na classe o tempo todo como intérpretes ou outros que apenas colocam CDs para a apreciação.
nota ao fim da postagem: "Considerando experiência tudo aquilo que se força
sobre nós, impondo-se ao nosso reconhecimento, e não
confundindo pensamento com pensamento racional (deliberado
e auto-controlado), pois este é apenas um dentre os casos
possíveis de pensamento, Peirce conclui que tudo que aparece
à consciência, assim o faz numa gradação de três propriedades
que correspondem aos três elementos formais de toda e
qualquer experiência.
Em 1867, essas categorias foram denominadas:
1) Qualidade,- 2) Relação e 3) Representação. Algum tempo depois, o termo Relação foi substituído por Reação e o termo Representação recebeu a denominação mais ampla de Mediação. Mas, para fins científicos, Peirce preferiu fixar-se na terminologia de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, por serem palavras inteiramente novas, livres de falsas associações a quaisquer termos já existentes." (Lucia Santaella - O que é semiótica - Ed. Brasiliense)